Com o aumento do uso das plataformas digitais para consumo, a sociedade mundial está vivendo uma revolução econômica irreversível. Diariamente se vê o surgimento de novos produtos e serviços prestados pelos meios digitais.

Tal fenômeno abalou todas as estruturas tradicionais de comércio, que se viram na necessidade de absorver essas mudanças e se adaptar aos novos tempos.

Aplicativos que oferecem milhares de opções de filmes, séries, jogos online e diversos outros programas digitais/softwares se tornaram parte do cotidiano da população brasileira.

Dentro desse universo, um dos protagonistas desse setor emergente é o serviço de licenciamento de uso de software.

Sendo consideradas prestadoras do serviço de “licenciamento de uso de software” ou “cessão de direito de uso de programa de computação” (terminologia antiga), essas empresas têm o potencial de possuir milhões de clientes espalhados pelo Brasil.

Porém, por mais instigantes que sejam esses negócios, tamanha operação empresarial precisa se enquadrar nas diretrizes legais do sistema de tributos brasileiro.

A problemática se torna mais visível quando analisamos os tributos municipais, especialmente em relação ao Imposto Sobre Serviço (ISS).

Caso um contribuinte preste um serviço que está elencado em uma das hipóteses da Lista Anexa da Lei Complementar nº 116, ele deverá observar o regramento do município competente e proceder com o recolhimento devido. 

Porém, em um país com dimensões continentais como o Brasil, é natural que haja milhares de municípios, sendo que cada um tem competência para disciplinar os seus tributos municipais de forma particular, desde que respeitando as diretrizes gerais.

Então, imaginem uma empresa que atua no setor de serviços no Brasil inteiro. Caso não seja estabelecido um planejamento tributário lúcido e técnico, ela poderá ter que observar mais de 5000 legislações municipais diferentes (atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios).

Empresas com clientes espalhados por todo território nacional não são difíceis de serem encontradas na atualidade, especialmente se analisarmos o setor de serviços prestados no âmbito digital.

Microsoft, Apple e Google são exemplos de agentes econômicos que atendem milhões de clientes em quase a totalidade do território brasileiro e que, caso não estruturem suas operações da forma correta, podem condenar suas promissoras marcas em virtude da infindável burocracia que se apresentará.

As marcas acima mencionadas são apenas os exemplos mais famosos de empresas que se multiplicam diariamente no mercado mundial: empresas que atuam, além de outras atividades, no licenciamento de uso de software (cessão de direito de uso de programa de computação).

Tendo em vista a natureza de sua atividade, são estruturas empresariais marcadas pela atuação no âmbito digital. Por não se restringirem a limites territoriais, tais negócios possuem uma facilidade na progressão de suas operações.

A pergunta que surge é a seguinte: como essas empresas conseguiram contornar toda essa burocracia e atuar de forma competitiva e lucrativa no mercado brasileiro? A resposta é simples: planejamento tributário prévio e consciente.

Dessa forma, o presente texto visa ilustrar de uma forma mais clara como a operação de licenciamento de uso de software pode ser viabilizada em larga escala sem acarretar a necessidade de observar um acúmulo estratosférico de burocracias municipais referentes à sistemática do ISS. 

Esse tema tem sua pertinência renovada atualmente em virtude do voto emanado pelo Ministro Luiz Fux no julgamento conjunto das ADINs nº 1945 e nº 5659.

Tal decisão representa o sétimo voto que concretizou maioria do colegiado no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade da incidência de ICMS sobre programas de computador nas situações de licenciamento e cessão de uso de software.

Segundo essa maioria formada na Corte, o Supremo Tribunal Federal mudou seu entendimento e pontuou que essas atividades são fatos geradores do ISS, tanto no caso de software “de prateleira” como “customizáveis”. 

Aplicativos e softwares são produtos muito atuais e de rápida difusão, representando assim uma fonte de arrecadação muito desejada pelas autoridades estatais.

A correta construção da operação de forma prévia e respeitando a tecnicidade do sistema tributário nacional é a única forma de preparar o empreendedor para se manter competitivo frente aos riscos do mercado brasileiro.

Qual é a regra de competência que determina a escolha do município que irá tributar o ISS?

Para entendermos como funciona a tributação do ISS nas operações de licenciamento de uso de software será necessário um breve estudo da sistemática tributária desse imposto.

O tributo municipal em análise está previsto no texto constitucional no Art. 156, inciso III, tendo como objeto de tributação os serviços de qualquer natureza, não compreendidos no Art. 155, inciso II, definidos em lei complementar.

A legislação complementar competente para regular a tributação do imposto sobre serviços é a Lei Complementar nº 116/03.

Com base no Art. 3º da lei complementar acima citada, considera-se prestado o serviço, e o imposto devido, no local do estabelecimento prestador ou, na falta do estabelecimento, no local do domicílio do prestador.

Exceções a essa regra geral apenas podem ser encontradas nas hipóteses previstas nos incisos I a XXV, quando o imposto será devido em local diverso específico.

Segundo o Art. 4º, considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de “sede”, “filial”, “agência”, “posto de atendimento”, “sucursal”, “escritório de representação”, “contato” ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.

Frente a essas informações preliminares, percebe-se que a regra geral de competência do município para exigência do imposto é o local do “estabelecimento do prestador” ou, caso não tenha, seu domicílio.

Analisando as hipóteses excepcionais que modificam a competência do município do prestador para local diverso, entende-se que nenhuma dessas situações se apresenta como pertinente para o caso da prestação de serviço de licenciamento de uso de software.

Essa delimitação de regra geral possui respaldo no entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça.

A Corte Superior brasileira confirma o entendimento do Art. 3º e pontua que somente será caracterizada “unidade econômica ou profissional” diversa da sede da empresa quando aquela praticar diretamente o serviço ofertado, não bastando a existência de suporte técnico de manutenção. 

Quanto ao licenciamento de software, como tal situação se aplica à sistemática atual do ISSQN?

Tendo já analisado os contornos legais mais pertinentes da tributação do ISS para o tema central deste estudo, passaremos a verificar como podemos enquadrar a operação de licenciamento de uso de software nessa sistemática tributária. Para tanto, entende-se como necessária uma breve explanação sobre esse serviço.

Didaticamente, o “licenciamento de uso de software”, também chamado de “cessão de direito de uso de programa de computação” ou “SaaS” (software as a service), é um serviço no qual uma empresa proprietária de um software (podendo ser um aplicativo, programa de computação etc) o disponibiliza para a utilização do cliente por meio de pagamento de uma mensalidade ou parcela única.

Durante o período de licenciamento, o consumidor tem acesso a atualizações periódicas do software e ao suporte fornecido pela empresa proprietária/administradora.

O Microsoft 365 (antigamente conhecido como “Pacote Office”) oferecido pela multinacional americana é um exemplo perfeito do serviço de licenciamento de uso de software. Outro que poderia ser citado é o pacote de programas de edição ofertados pela Adobe, muito utilizado pelo mercado de edição de vídeos e imagens. 

Porém, tal atividade não está restrita aos grandes players mundiais de tecnologia. É possível verificar diariamente o surgimento de novos aplicativos e programas que buscam oferecer ao consumidor alguma funcionalidade ou instrumento inovador.

Quanto à atividade de licenciamento de uso de software, o serviço está previsto expressamente na Lista Anexa no subitem 1.05 (Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação). Com base nas informações já elencadas, podemos estabelecer algumas premissas que precisam ser observadas.

O entendimento jurisprudencial tem demonstrado que a caracterização de “unidade econômica ou profissional” é condição essencial para que uma sede de uma empresa seja caracterizada como “estabelecimento prestador” para fins de tributação do ISS. Dessa forma, toda vez que for praticado serviço-fim da empresa em sede de determinada localidade, o município em que estiver vinculada a sede será competente para exigir o imposto de serviço sobre a operação.

Porém, em relação ao licenciamento de uso de software, vale lembrar que essa operação possui contornos muito peculiares.

A prestação do serviço não demanda que haja necessariamente uma sede física em cada município dos seus clientes para que ela se concretize.

Frente a facilidade trazida pela internet, é possível que uma empresa preste serviços para clientes espalhados no Brasil inteiro por meio de sede em uma única localidade.

Mas como se precaver dos órgãos fazendários dos municípios dos clientes do serviço que querem tributar essa operação? Como pode o empreendedor se proteger dessa ameaça?

Para tanto, o caminho mais seguro é construir um planejamento tributário com base nos entendimentos jurisprudenciais emanados pelos tribunais do Poder Judiciário.

Sendo um Tribunal muito atento a temas inovadores, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui julgados sobre o tema no sentido de exigir a configuração de “unidade econômica ou profissional” no município para atrair a competência de exigência do ISS em relação ao serviço de licenciamento de uso prestado pelo contribuinte sediado em outro município.

A egrégia Corte paulista pontua: “De fato, ainda que o serviço de licenciamento de uso de software inclua a fase de instalação e treinamento de pessoal no local do tomador do serviço, o núcleo do serviço (objeto principal do contrato) caracteriza-se pela cessão da licença de uso do programa, atividade desenvolvida no núcleo decisório da empresa em sua sede localizada no município de São Paulo”.

No caso acima citado, a empresa que possuía uma sede no município de Jandira buscava combater a tentativa arrecadatória daquela municipalidade que pretendia tributar os licenciamentos de uso de softwares praticadas em seus limites.

Dessa forma, é necessário que reste configurada “unidade econômica ou profissional” da empresa no município para que ele possa exigir a tributação do ISS sobre serviço prestado em suas dependências.

O Poder Judiciário tem sinalizado que a existência de mera sede de manutenção, implementação ou instalação do serviço na localidade não capacita o município a exigir o imposto municipal em questão.

Buscando recorrer a elementos mais ilustrativos, segue abaixo um quadro que demonstra como funciona a arrecadação de ISS em relação à empresa prestadora de licenciamento de uso de software:

Arrecadação de ISS e licenciamento de uso de software

Com base no quadro exemplificativo, percebe-se que a “XPTO TECNOLOGIA LTDA” possui sua operação concretada no município da sede matriz da empresa.

Sendo assim, como o serviço é prestado de forma integral na matriz, somente essa sede se configura como “unidade econômica ou profissional”. Dessa forma, diante do exemplo, a empresa somente recolherá ISS no Município A. 

Caso houvesse nas demais localidades sedes mantidas pela empresa para fins de manutenção, implementação ou instalação do seu serviço, ainda assim essas não poderiam ser consideradas como “estabelecimentos prestadores” para fins de ISS, visto que praticam apenas atividades de suporte ao serviço principal.

Conclusão

Além de serem consideradas cases de grande sucesso no mundo todo, empresas como Microsoft, Google, Apple e Adobe compartilham um aspecto essencial: em relação aos seus pacotes de softwares, são consideradas pelo ordenamento jurídico brasileiro como prestadores de serviço (licenciamento de uso de software).

Em virtude de sua atividade de licenciamento, essas empresas, quando operam no Brasil, são contribuintes do imposto sobre serviço em cada localidade em que restar configurada que sua sede é uma “unidade econômica ou profissional” da empresa.

Assim, buscando reduzir exponencialmente a burocracia que envolveria e inviabilizaria sua operação, as empresas que atuam com licenciamento de uso de software têm a opção de concentrar essa atividade em um único município (de preferência com uma alíquota menor de ISS), simplificando o recolhimento do imposto sobre serviços prestados no Brasil todo que se dará nessa única localidade.

Conforme visto, visando a manutenção e suporte do serviço, a instituição de filial de apoio destinada a instalação, implantação ou suporte técnico do serviço não tem o condão de caracterizar tal sede como estabelecimento prestador para fins de ISS.

A era digital já se consolidou no cotidiano da sociedade brasileira. Resta claro que a tendência é o crescimento estratosférico do número de empreendimentos virtuais.

Dessa forma, o planejamento tributário da operação pelo empreendedor de forma prévia é condição essencial para direcionar sua empresa para um caminho semelhante ao dos atuais cases de sucesso e distanciá-la das possíveis complicações burocráticas recorrentemente encontradas no sistema tributário brasileiro.

Se tiver dúvidas sobre o tema, deixe seu comentário.

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Escrito por Rafael Nardin

Autor Vamos Escrever, é advogado especialista em Direito Tributário e Direito Público, autor de artigos acadêmicos publicados tanto no âmbito nacional como internacional. Entusiasta da área acadêmica com linha de pesquisa direcionada ao estudo do impacto tributário nas novas tecnologias. 📩rafaelnardin@vamosescrever.com.br Saiba mais sobre o autor