Tendo em vista a crescente migração das relações pessoais e profissionais para o âmbito digital, a importância do desenvolvimento e uso dos softwares é um fenômeno notável e imparável. 

Nos últimos tempos, os avanços tecnológicos assumiram um ritmo galopante, trazendo inovações e novas perspectivas quase que diariamente. Assim, diante de uma situação inédita, é muito natural que o primeiro tratamento jurídico dado a uma certa tecnologia possa ser alterado ao longo do tempo. 

E com os softwares não poderia ser diferente. Analisando o tema pelo ponto de vista tributário, o tratamento dado pelo ordenamento brasileiro às atividades relacionadas aos softwares tem sofrido mutações ao longo dos anos. Durante um bom tempo, muitos contribuintes tinham dúvidas sobre qual dos impostos deveria incidir sobre essa atividade. Afinal, software deve ser tratado como uma mercadoria (ICMS) ou como um serviço (ISS)?

Ciente dessa notável incerteza, este texto foi construído para esclarecer de forma didática a correta tributação que deve incidir sobre as atividades relacionadas ao uso de softwares. Esse esclarecimento é válido e muito relevante, uma vez que o Supremo Tribunal Federal recentemente modificou por completo o seu antigo entendimento sobre o tema.

Porém, antes de explicar a correta sistemática de tributação, precisamos conversar sobre alguns conceitos iniciais relacionados ao software.

SOFTWARE “DE PRATELEIRA/PADRONIZADO” E SOFTWARE “POR ENCOMENDA”: PARA FINS FISCAIS, EXISTE ALGUMA DIFERENÇA ENTRE ESSES PROGRAMAS? 

Ao estudar as antigas decisões judiciais sobre a tributação dos softwares, o leitor vai se deparar com várias expressões como software “de prateleira/padronizado” e software “por encomenda”. 

Os mais jovens terão um pouco de dificuldade para entender esse ponto, uma vez que, atualmente, quase que a totalidade dos softwares são adquiridos por meio da internet. Porém, antigamente, existia uma grande discussão entre as autoridades fiscais estaduais e municipais acerca de quem teria competência para tributar a “venda” de softwares. 

No começo de sua distribuição, muitos softwares eram vendidos em mídias/suportes físicos em lojas de informática. Assim, os programas de computador que eram vendidos ao público geral e não possuíam nenhuma personalização para um consumidor final específico eram denominados como softwares “de prateleira/padronizados”, fazendo-se alusão às embalagens de discos vendidos presencialmente nas lojas especializadas. Já os softwares que eram programados de forma especial para os interesses de um cliente eram chamados de softwares “por encomenda”.

Tendo em vista a predominância das mídias físicas na época, os Fiscos estaduais entendiam que essa operação simbolizava uma verdadeira circulação de mercadoria. Logo, devia ser exigida a carga tributária correspondente ao ICMS. Em face do descontentamento dos Fiscos municipais e dos próprios contribuintes, essa discussão judicial acabou por inundar os Tribunais que se posicionaram, preliminarmente, de forma dividida.

Conforme julgamento do RE nº 176.626/SP realizado em 10 de novembro de 1998, a Primeira Turma da Corte Suprema concluiu, em síntese, que o mercado de softwares deveria ser tributado de forma segmentada pelas sistemáticas do ICMS e do ISS. Então, caso se tratasse de comercialização software padrão destinado para o público geral (software “de prateleira”), tal atividade simbolizaria uma circulação de mercadoria, sendo cabível a tributação do ICMS. E, caso se tratasse de software confeccionado de forma específica para um cliente (software “por encomenda”), essa atividade representaria uma prestação de serviço, devendo incidir o ISS.

Entretanto, vale lembrar que esse entendimento foi ultrapassado pelo Supremo Tribunal Federal recentemente. Ao julgar em conjunto as ADIs n° 1.945 e 5.659, a Corte Suprema, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, definiu um novo parâmetro para orientar a tributação das atividades de uso de softwares nos próximos anos. A seguir, veremos mais detalhadamente quais foram as atualizações. 

QUAL É O TRATAMENTO TRIBUTÁRIO ENTENDIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO CORRETO?

No dia 18 de fevereiro de 2021, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento de duas ações diretas de inconstitucionalidades (ADIs n° 1.945 e 5.659) que versavam sobre a temática da correta tributação das atividades de licenciamento de uso de software. A definição alcançada pela Corte Suprema é no sentido de que essas atividades somente podem ser tributadas pela sistemática do ISS.

Mesmo que já se tenha antecipada a conclusão do STF, é muito importante entendermos as razões que fundamentam essa decisão com efeitos vinculantes. Em síntese, a Corte concluiu que quando um indivíduo “adquire” um software, em verdade, está adquirindo apenas o direito de uso deste. 

Nesse sentido, mesmo que adquira por meio de uma mídia física, não se está operando uma circulação de mercadoria, pois a titularidade do software em si não está sendo transferida para o consumidor. O pagamento em questão possibilita apenas o uso daquele programa de computador, porém não permite que o consumidor se torne dono da propriedade intelectual do sistema do programa.

Buscando exemplificar esse raciocínio, podemos descrever o seguinte cenário: quando uma pessoa adquire o Pacote Office da empresa Microsoft, ela não está se tornando titular desse conjunto de softwares, mas sim está sendo habilitada a utilizar as suas funções. Isto é, está sendo cedido para ela o direito de uso das ferramentas proporcionadas pelos programas de computador em questão, porém não se opera a troca de titularidade do software da empresa para o consumidor.

Essa perspectiva adotada impossibilita a identificação do fato gerador do ICMS, uma vez que, não sendo considerado o software como uma mercadoria, ele nunca poderia ser circulado juridicamente. Dessa forma, as atividades relacionadas ao uso de software são consideradas como uma verdadeira prestação de serviço, pois os usuários desses programas de computador têm acesso a, apenas, suas funcionalidades e atributos.

Além disso, destaca-se que as atividades relacionadas ao uso de softwares já se encontram previstas em alguns itens que compõem a lista anexa da Lei Complementar n° 116/03. A título de exemplo, a legislação complementar em questão dispõe que o “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação” (Item 1.05 da Lista Anexa) é um serviço tributado pelo ISS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista que o Poder Judiciário modificou seu antigo entendimento sobre a tributação das atividades de uso de softwares, é essencial que as empresas revejam o tratamento dado por elas nos seus cotidianos. Concluída a descaracterização do software como mercadoria, resta consolidado que o uso ou “venda” de software não representa hipótese de incidência de ICMS.

Percebe-se que a mudança do entendimento jurisprudencial acompanhou a mudança de percepção que a sociedade possui com relação ao mundo dos softwares. O constante ingresso da tecnologia no cotidiano das pessoas fez com que a forma como elas encaram e usam essas ferramentas digitais tenha sofrido alterações profundas.

Como ocorreu com a temática dos programas de computação, é muito provável que as Cortes Judiciais revejam seus entendimentos em relação a outras recentes inovações tecnológicas. Temas como armazenamento na nuvem (Cloud Storage) e financiamento coletivo (Crowdfunding) são bons exemplos de futuras pautas que deverão ser analisadas pelo Poder Judiciário acerca dos efeitos tributários incidentes. 

Nesse contexto, o crescimento da importância da tecnologia em todos os ramos da economia tem chamado muito atenção das autoridades fiscais para as empresas que atuam nessa seara. 

Dessa forma, é vital que os empreendedores da área estejam sempre atentos aos corretos tratamentos tributários de seu ramo, pois essa prevenção certamente representará uma evidente proteção do patrimônio da empresa em face dos anseios arrecadatórios dos órgãos fazendários.

Quer saber mais sobre o tema? Então leia nosso artigo: A triburação do ISS dos aplicativos de licenciamento de uso de software. E para estar sempre em dia com suas obrigações fiscais, conheça o Qive!

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Escrito por Rafael Nardin

Autor Vamos Escrever, é advogado especialista em Direito Tributário e Direito Público, autor de artigos acadêmicos publicados tanto no âmbito nacional como internacional. Entusiasta da área acadêmica com linha de pesquisa direcionada ao estudo do impacto tributário nas novas tecnologias. 📩rafaelnardin@vamosescrever.com.br Saiba mais sobre o autor