Dentre as figuras legais peculiares que compõem o sistema de tributos brasileiro, as retenções tributárias são exemplos que se destacam no cotidiano.
Diante de um país com extensões continentais, as autoridades fiscais tendem a desenvolver mecanismos que auxiliam a fiscalizar e tributar as relações econômicas praticadas pelos particulares.
Afinal, tendo em vista a mão-de-obra limitada e o infindável número de operações praticadas todos os dias, tornou-se normal para os empreendedores terem que gerir obrigações acessórias oriundas de situações de substituição tributária, responsabilidade tributária solidária e diversas outras presunções legais.
As retenções tributárias facilitam o controle por parte do Fisco do recolhimento de tributos advindo de operações econômicas que, caso fosse mantido o sistema tradicional de tributação, seriam difíceis de serem fiscalizadas.
Além disso, sua finalidade principal é o rastreio das operações praticadas por alguns setores da economia.
Quando se fala em retenções tributárias, a temática que mais se destaca é a referente aos tributos federais. IRPJ, CSLL, contribuição ao PIS e a COFINS podem ser considerados como os protagonistas desta obrigação acessória imposta a um expressivo grupo de contribuintes.
Diante deste espectro de tributos federais, o legislador identificou algumas modalidades de serviço que, devido às peculiaridades de suas operações, demandariam um cuidado fiscalizatório maior.
São elas, em síntese: avaliação e perícia, desenho técnico, auditoria, engenharia e manutenção. Além disso, consultoria, ensino, alguns serviços da área da saúde, locação de mão de obra, advocacia, contabilidade, entre outros, também estão incluídos.
A orientação básica para os empreendedores que atuam em um dos setores elencados pelo legislador é simples: seguir as diretrizes apontadas pela legislação e, caso haja dúvidas sobre possíveis situações “cinzentas”, seguir as orientações proferidas pelas autoridades fiscalizatórias, como no caso das soluções de consulta à legislação tributária emanadas pelo fisco estatal.
Porém, e se, nessas situações em que se depende das manifestações estatais, não haja manifestação acerca de como o contribuinte deve atuar? Ou pior, se já existirem orientações da Receita Federal sobre uma situação cujas razões se encontram claramente desatualizadas?
Essa última situação ilustrada é exatamente o que os licenciadores de uso de software estão se perguntando no momento. Mesmo que já existam diversas soluções de consulta emanadas pela Receita Federal sobre o tema de retenções de tributos federais nas operações de licenciamento de uso de software (nº 481/2006, nº 130/2016, nº 243/2017 e nº 29/2018), ao se averiguar as razões pontuadas em cada uma destas manifestações, percebe-se com clareza que a linha argumentativa utilizada pelo Fisco Federal está baseada no antigo e já ultrapassado entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da diferenciação dos “softwares de prateleira” e “softwares por encomenda”.
Para entender melhor essa situação específica, vamos analisar os principais aspectos sobre as retenções tributárias aplicadas nas operações vinculadas aos mercados dos softwares.
Entendimento administrativo atual e desatualizado? como isso?
A obrigação de retenção tributária dos tributos federais no mercado dos softwares está baseada nas disposições do Art. 714 do Regulamento do Imposto de Renda (Decreto nº 9.580/18) e do Art. 30 da Lei nº 10.833/03. As soluções de consulta emitidas pela Receita Federal do Brasil nº 481/2006, nº 130/2016, nº 243/2017 e nº 29/2018 orientam que o empreendedor escolha entre duas opções a serem seguidas: caso a operação envolva “softwares desenvolvidos para usuários de uso geral”, a retenção tributária não é devida.
No entanto, caso envolva “softwares decorrentes de prestação de serviços de elaboração de programas de computador por encomenda para uso exclusivo do encomendante”, a retenção se apresenta como necessária.
Analisando os fundamentos utilizados pelas autoridades fazendárias, o Fisco baseia seu entendimento primordialmente nas concepções antigas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Para fins de tributação do ISS e do ICMS, a Corte Suprema possuía entendimento no sentido de diferenciar as operações de softwares em relação à determinação de seu destinatário.
Caso o software tivesse sido projetado de forma a atender um cliente em específico (software por encomenda), tal operação era considerada como prestação de um serviço, devendo incidir o ISS.
Já no caso dos softwares projetados para uso de usuário em geral (software de prateleira), o STF entendia que essa operação não se apresentava como serviço, mas sim como hipótese de circulação de mercadoria, fato gerador do ICMS.
Tendo em mente essas classificações jurídicas, o Fisco Federal procedeu com a fundamentação das soluções de consulta a respeito das retenções tributárias com base nesse raciocínio retirado da jurisprudência antiga da Corte Suprema. Assim, para os casos de empresas que operam com softwares “de prateleira” / para usuário geral, visto que não se trata de prestação de serviço, não estão obrigadas a reter a carga tributária federal na fonte.
Porém, essas premissas argumentativas não subsistem atualmente, pois o Supremo Tribunal Federal modificou e atualizou recentemente seu entendimento antigo.
Novo posicionamento do stf acerca da classificação jurídica de software
O Supremo Tribunal Federal foi provocado para se manifestar novamente acerca de questões jurídicas vinculadas à classificação para fins tributários dos softwares.
Foram propostas duas ações diretas de inconstitucionalidade (nsº 1.945 e 5.659), que atacam dispositivos legais que possibilitavam a tributação de parcela do mercado de softwares pelo ICMS. Tendo em vista a similaridade das temáticas abordadas, a Corte Suprema decidiu por julgar as ações diretas em conjunto, visando evitar decisões contraditórias sobre a mesma matéria.
Com o voto do ministro Luiz Fux, proferido no dia 4 de novembro de 2020, formou-se maioria definitiva no sentido de alterar o antigo entendimento da classificação jurídica dos softwares quanto à identificação como mercadoria ou serviço. A conclusão dos 7 ministros que votaram a favor da procedência das ações é a seguinte: não importa se o software/programa de computador foi desenvolvido em prol de um destinatário específico (sob encomenda) ou a favor de usuário em geral (“de prateleira”), em todas as situações a operação de licenciamento será considerada como uma prestação de serviço.
Tal julgado consagra uma clara mudança de entendimento sinalizada pelo Poder Judiciário quanto ao tratamento jurídico até então dado às operações vinculadas aos softwares. Após essa explicação, alguns leitores podem ter se distraído e pensado: pera aí, o que esse julgamento do STF tem a ver com a obrigação dos licenciadores de uso de software de reter tributos federais na fonte? Bom, no caso tudo.
Como tínhamos comentado, todas as manifestações administrativas proferidas pela RFB sobre como os contribuintes devem proceder no caso de retenções tributárias no mercado de softwares estavam vinculadas ao entendimento ultrapassado pelo STF. Dessa forma, caso um contribuinte esteja procedendo com a não retenção de tributos federais com base nas soluções de consulta nº 481/2006, nº 130/2016, nº 243/2017 e nº 29/2018, tal conduta não se encontra plenamente segura.
Então, o que eu, empreendedor do mercado de softwares, devo fazer para me precaver de possíveis mudanças de entendimento das autoridades fiscais?
Frente a esse cenário de possível mudança de tratamento pelo autoridades fiscais, o contribuinte que atua no mercado de softwares pode optar por algumas opções para atuar em relação à temática das retenções tributárias:
1ª Opção – Manter conduta conforme entendimentos administrativos desatualizados:
Por meio de uma perspectiva mais simplista, o contribuinte pode continuar a proceder conforme as antigas soluções de consulta, sabendo que a manifestação não o assegura mais de forma plena. Sua conduta seria mantida até que fosse manifestado novo entendimento acerca do tema e de como deverá ser tratado o assunto das retenções tributárias no mercado de softwares.
Essa opção não se apresenta como a mais prudente, visto que estaria negligenciando clara modificação de entendimento do Poder Judiciário que é essencialmente relacionada à questão das retenções. O contribuinte que escolhesse essa alternativa estaria se colocando em risco de uma possível autuação, caso a Receita Federal decida por modificar seu tratamento à matéria.
2ª Opção – Proceder com consulta à legislação tributária à receita federal do brasil
Tendo em vista que se constatou que os fundamentos que baseiam as correntes soluções de consulta sobre o tema estão ultrapassados, a opção mais segura para o contribuinte seria a de proceder com nova consulta à RFB, questionando se a autoridade fazendária federal vai proceder com a revisão de seu entendimento frente ao julgamento do STF das ADI nº 1.945 e nº 5.659.
Tal medida asseguraria a empresa de qual tratamento deve ser empreendido em relação às retenções tributárias, salvaguardando o contribuinte de possíveis questionamentos futuros da RFB, enquanto não proferida solução para consulta formulada. Assim, a empresa estaria agindo de forma clara e com base na boa-fé.
Conclusão
É muito difícil desenhar qual será o novo entendimento proferido pela Receita Federal sobre o assunto frente às recentes modificações da jurisprudência pátria. Caso a RFB não reveja sua linha argumentativa e apenas a enquadre às novas diretrizes traçadas pelo STF, muito provavelmente todas as empresas que operam com softwares, por se tratarem de prestações de serviço, deverão proceder com a retenção dos tributos federais na fonte.
Porém, nada impede que o Fisco Federal, sensibilizado pela modificação trazida pela Corte Suprema, altere sua linha argumentativa para entender como possível a não retenção dos tributos federais na fonte com base em outros fundamentos, visando manter o tratamento até então dado para o assunto. Sendo pela manutenção ou pela alteração do entendimento, percebe-se que a obrigação de retenção de tributos federais nas operações com softwares é uma temática que não se encontra pacificada perante as autoridades estatais.
Diante deste cenário de incerteza, o empreendedor deve avaliar os riscos e os benefícios de cada opção negocial e escolher qual alternativa se apresenta como mais benéfica para seu perfil de negócio. Do ponto de vista jurídico, a opção mais assertiva seria o questionamento à RFB por meio de consulta, porém, sabemos que o mundo empresarial comporta peculiaridades que podem justificar decisões diversas.
E se você quer saber mais sobre o assunto, leia o nosso artigo: A tributação do ISS dos aplicativos de licenciamento de uso de software
Veja também
Otimize rotinas, reduza custos e evite multas
Tudo o que você precisa na Qive para gestão financeira e fiscal do jeito certo: automatizada e estratégica.